Sento-me à mesa com um mapa no qual as linhas costeiras do Rovuma parecem traçar um futuro possível. Eu vejo números — frios, precisos — que batem à porta do país, eu vejo pessoas muitas, que esperam que esses números se transformem em emprego, escolas, estradas, hospitais, fábricas, portanto, como economista, não consigo fingir indiferença: o Coral Norte é, em linguagem técnica, um choque de oferta enorme com potencial transformador do estágio de produção da nossa economia, em linguagem humana, é uma oportunidade para semear transformação. Mas é também um teste: saberemos transformar um recurso não renovável em capital humano, industrial e fiscal duradouro, ou veremos os rendimentos escaparem como gás pela chaminé do lucro alheio?
- Um choque de oferta de US$ 7,2 mil milhões que pode transformar gás em poder, reservas em soberania e esperança em produtividade
Bem, o projecto aprovado e impulsionado pela ENI e parceiros tem uma envergadura que fala por si. O Coral Norte recebeu aprovação do governo através do presidente da república Daniel Chapo e a decisão final de investimento — CAPEX estimado em cerca de US$ 7,2 mil milhões e acrescenta ao país uma capacidade adicional de aproximadamente 3,5 – 3,6 milhões de toneladas de GNL por ano, duplicando a capacidade produtiva do Rovuma para 7 milhões de tonelas de GNL por ano, a vida útil projectada ronda 30 anos. As estimativas públicas colocam receitas fiscais potenciais na ordem de US$ 23 mil milhões ao longo do ciclo de vida do projecto, e reservas contratuais para fornecedores nacionais entre US$ 800 milhões nos primeiros seis anos, porém, com potencial para até US$ 3 mil milhões ao longo do tempo. A ENI anunciou ainda compromissos para investimento doméstico, como a construção de uma central térmica de 75 MW em Temane e programas de biocombustíveis que visam integrar produtores rurais.
- O Coral Norte é mais que um projecto de gás: é o ensaio da industrialização moçambicana e o primeiro degrau rumo à economia de escala crescente
Permitam-me traduzir esses números em mecânica económica: 3,5 Milhões de Toneladas por ano (Mtpa) de GNL significa divisas previsíveis e recorrente, US$ 23 mil milhões em receitas fiscais é um fluxo que, se bem gerido, fornece margem para investimento público estratégico. Se tomarmos a Receita média anual simples (US$ 23 mil milhões / 30 anos), chegamos a cerca de US$ 766 milhões por ano que corresponderia a 38,5% do défice orçamental segundo o PESOE de 2025, bem alocados, podem transformar radicalmente o financiamento de infra-estruturas e capital humano. Se os aproximadamente 875 mil toneladas/ano (25% do total) forem canalizadas para o mercado doméstico como gás para electricidade e indústria, abrimos a porta para produção local com gás como insumo barato — o fundamento para economias de escala crescente.
- O que significa isto em termos económicos?
No jargão: estamos diante de um grande choque positivo de endowments (dotação de recursos) que pode deslocar a vantagem comparativa do país — hoje muito baseada em recursos naturais e agricultura de baixa produtividade e valor — para uma vantagem comparativa nova: produção industrial competitiva com energia assegurada. Se convertermos essa vantagem em vantagem competitiva (empresas locais eficientes, cadeias de fornecimento integradas, tecnologia e capital humano), poderemos ver sectores nascente-sustentáveis — fertilizantes, petroquímica leve, geração térmica a gás, agroprocessamento e turismo de alto padrão — escalar com custos unitários decrescentes (economias de escala) e ganhos de produtividade.
Mas isso não acontece por osmose. Há três vectores técnicos e institucionais que definem o sucesso:
- Conteúdo local e cadeia de valor (backward & forward linkages);
- Governança fiscal e gestão de receitas; e
- Política industrial coordenada (infra-estrutura, formação e regulação).
- Conteúdo local e efeitos Multiplicadores
Os compromissos anunciados — até US$ 3 mil milhões em contratos nacionais não são etiqueta, são a alavanca para fomentar PME’s, criar fornecedores locais e gerar empregos indirectos em logística, construção civil, alimentação e serviços. Economistas chamam isso de efeitos backward linkages: cada dólar gasto localmente gera múltiplos de actividade na economia. Supondo um multiplicador conservador de 2 a 3 para gastos em bens e serviços locais, US$ 0,8 – 3,0 mil milhões poderiam gerar US$ 1,6–9,0 mil milhões de actividade económica adicional ao longo dos anos, com milhares de postos de trabalho directos e indirectos. É por isso que insisto: 1.400 empregos directos são apenas a ponta do iceberg, o verdadeiro gerador de empregos será a capacidade de transformar contratos em cadeias robustas de fornecimento e em zonas de actividade industrial locais.
- Gás doméstico: soberania energética e correcção de falhas de mercado
Reservar 25% do gás para o mercado doméstico e utilizar 100% do condensado para geração eléctrica é uma decisão estrutural. Isto corrige uma falha de mercado clássica: o external shock (preço internacional do gás) tende a deter investimento doméstico quando a oferta local é insuficiente. Ao assegurar volume interno, o governo reduz risco de racionamento energético e queda de produção industrial. Energia mais barata e confiável reduz custos de produção, melhora margem das empresas e fortalece o sector privado — combustíveis para fábricas, refrigeração para agro-indústria, vapor para processamento. O resultado provavelmente será um aumento da capacidade instalada do país e da produtividade sectorial, permitindo que empresas moçambicanas ganhem terreno nas cadeias regionais de valor.
- Quantos jovens podem trabalhar? Uma estimativa responsável
Os números de emprego são sensíveis; prefiro trabalhar por cenários. Se os US$ 3 mil milhões em compras nacionais forem canalizados com política activa de formação, crédito e certificação, cada US$ 100.000 gasto em conteúdo local (equipamento, serviços, subcontratação) pode gerar cerca de 2 – 4 empregos directos e 4 – 8 indirectos, dependendo do sector. Assim, US$ 3 mil milhões bem orientados podem, ao longo da cadeia de fornecimento e operação, sustentar entre 30.000 e 80.000 empregos indirectos e directos ao longo do tempo — uma ordem de magnitude que transformaria o mercado de trabalho juvenil se combinada com programas de formação técnica (TVET) e estágios industriais. Se formos conservadores e considerarmos apenas US$ 800 milhões, poderíamos estar a falar de 8.000 a 20.000 empregos em múltiplos segmentos. Estas são estimativas dependentes de política activa — sem intervenção, o número real cai drasticamente. (Estimativa baseada em multiplicadores de indústria e estudos de Conteúdo local).
- O que aprender com Nigéria, Angola e Argélia
Os exemplos africanos são lições vivas. A Nigéria demonstrou que integrar gás ao tecido industrial — por exemplo, usar gás para fertilizantes e petroquímica (projectos como Brass) — amplia receitas e reduz importações (menor fardo cambial). A legislação recente (Petroleum Industry Act) criou estruturas para o midstream e downstream, incentivando investimentos em transformação local e uso doméstico do gás. Angola tem avançado com um Gas Master Plan, procurando transformar descobertas em motores industriais regionais, com foco em refino, gás para electricidade e atracção de investimentos para o downstream. A Argélia, por seu turno, mostrou que reservas grandes geram rendimento, mas, sem diversificação e reformas, o crescimento humano permanece limitado, entretanto, suas exportações para a Europa garantiram caixa e influência geopolítica — lições sobre mercado, clientela e dependência.
Conclusão destas experiências: é possível transformar gás em industrialização real, mas isso exige:
- Legislação sólida e previsível;
- Fundos de estabilização e soberanos bem desenhados;
- Investimentos em capital humano;
- Combate à captura política das rendimento e;
- Incentivos ao desenvolvimento do sector private-nacional, não só isenções.
- Erros a evitar — um roteiro prático
- Exportar tudo e importar o resto. A tentação de maximizar receitas de curto prazo vendendo todo o GNL sem reinvestir no país cria dependência e desemprego;
- Negligenciar o conteúdo local. Contratos que não transferem tecnologia e know-how deixam as empresas nacionais como meros provedores de mão-de-obra barata;
- Ausência de soberania fiscal inteligente. Gastar receitas em consumo corrente cria um boom É preciso um fundo soberano + regras fiscais (regra de poupança e estabilização);
- Não investir em formação técnica. Sem TVET e parcerias com a indústria, salários serão preenchidos por estrangeiros; e
- Má governança e falta de transparência. Isso corrói confiança, aumenta o custo de capital e afasta investidores sérios.
- Caminhos concretos que Moçambique deve trilhar
Primeiro, criar um Plano Industrial Integrado ligado ao Coral Norte: zonas industriais gas-fed em Temane e Pemba, com incentivos para fertilizantes, petroquímica leve e agroprocessamento. Segundo, instituir um Fundo de Estabilização e Desenvolvimento com regras claras (por exemplo: ceder X% para estabilização macro, Y% para infra-estrutura produtiva, Z% para fundos de capital para PME’s). Terceiro, um compromisso legal firme de conteúdo local com metas vinculativas, cronogramas e auditoria independente. Quarto, um programa nacional massivo de formação técnica: escolas técnicas, estágios obrigatórios em projectos, parcerias ENI-universidades-empresas locais. Quinto, políticas de atracção de investimento ancoradas por garantias parciais e one -stop shop para licenciamento, reduzindo risco e custo de entrada. Em paralelo, mecanismos de hedge para receitas em dólares e gestão profissional das reservas cambiais para evitar choques e proteger importações estratégicas.
- Impacto provincial — um exercício pragmático
Cabo Delgado (proximidade: operações offshore e base logística) deve concentrar a maior fatia de empregabilidade directa e serviços. É razoável estimar que 40 – 60% dos postos directos e a maioria dos postos de construção e manutenção fiquem concentrados ali, além de empregos indirectos em alojamento, transporte e alimentação. Inhambane (Temane), receberá investimentos em geração (75 MW) e zonas industriais que podem atrair indústrias intensivas em energia; o efeito multiplicador aqui é industrializar com gás. Nampula, Niassa e Zambézia beneficiarão da demanda agregada por alimentos e serviços, com oportunidades no agroprocessamento e logística. Em termos quantitativos, se aceitarmos o caso de 30.000 empregos gerados pela cadeia de fornecimento nacional (cenário optimista), Cabo Delgado e Inhambane juntos poderiam concentrar 50 – 70% desses empregos; as restantes províncias repartiriam o restante conforme políticas de descentralização e infra-estrutura. Estas estimativas dependem de deliberate policy design e da velocidade de execução.
- Sectores que florescerão e como a economia se diversifica
Agro-indústria e biocombustíveis: com o compromisso da ENI em fomentar oleaginosas, espera-se substituição de importações de óleo combustível na produção local e transformação de pequenos agricultores em fornecedores de matérias-primas.
Fertilizantes e petroquímica leve: gás barato viabiliza produção local, reduz importações e aumenta valor agregado das exportações. A Nigéria oferece modelo prático: integração gás→fertilizante→farming yield ↑ → import substitution.
Energia e electrificação industrial: centrais a gás (Temane + novos projectos) permitem energia confiável para a indústria, atraindo investimento e reduzindo custo de capital;
Turismo de alto valor: Infra-estrutura e energia estável reduzem risco e atraem resorts, ecoturismo e serviços de luxo
Logística e construção civil: as obras e equipamentos do projecto e as zonas industriais irão gerar procura por serviços de engenharia, transporte, armazenamento e construção.
- Finanças públicas, divisas e o fim da escassez?
A entrada de GNL em escala mundial significa volumes de exportação em dólares que, geridos com prudência, aumentam as reservas cambiais e aliviam a pressão sobre a balança de pagamentos. Mais divisas permitem alívio de racionamentos import, estabilização do metical e custo de financiamento externo menor.
- Como atrair mais investimento a partir da posição de 14.º produtor mundial de GNL
Ser o 14.º maior exportador mundial e o 4.º em África é um sinal poderoso: reduz percepção de risco, melhora ratings de crédito (se acompanhado de governação forte) e atrai IDE para sectores adjacentes. Investidores procuram: regras claras, mão-de-obra qualificada, segurança jurídica e logística eficiente. Moçambique deve “vender” não apenas gás, mas um ecossistema: zonas industriais prontas, centros de formação, parceria público-privada, incentivos fiscais com contrapartidas de conteúdo local e protecção de investidores via tribunal arbitral claro.
- Riscos e contramedidas — o lado pragmático e duro
Risco 1: doença holandesa (Dutch disease), onde o sector de recursos apressa apreciação cambial e sufoca a produção não ligada a recursos.
Contra medida: política macro prudente, fundos soberanos e estímulo à indústria exportadora não-commodity.
Risco 2: captura das rendas.
Contra medida: transparência, contratos publicados, auditoria externa e participação da sociedade civil.
Risco 3: segurança e continuidade.
Contra medida: parcerias com forças locais, investimento social e programas de inclusão para reduzir vulnerabilidades regionais.
Risco 4: choques de preço.
Contra medida: hedge das receitas e estabilização fiscal.
- A linguagem Final
Se o gás é o fertilizante, os nossos agricultores precisam de arados, sementes melhoradas e técnicos; se o gás é a chama, precisamos de fornos, engenheiros e cadeias de aço; se o gás é o rio de divisas, precisamos de canais sólidos (instituições) para que a água chegue aos campos e não inunde apenas a casa dos poucos. Economias de escala crescentes só se materializam quando há mercado suficiente, logística e firmas capazes; vantagem comparativa só vira vantagem competitiva quando se constrói capital humano e tecnologia. O Coral Norte dá-nos o insumo — a nós cabe escolher se seremos consumidores passivos ou arquitectos da Transformação.
- Fecho: compromisso e urgência
Eu termino onde comecei: com um mapa e números que batem à porta. US$ 7,2 mil milhões capitais, 3,5 Mtpa de produção, US$ 23 mil milhões de receitas fiscais, US$ 0,8 – 3,0 mil milhões em compras a fornecedores nacionais, 25% do gás para o mercado doméstico e uma central de 75 MW — estes são os elementos concretos que compõem a equação. A pergunta é simples: vamos escrever políticas que convertam esses fluxos em trabalho digno, fábricas activas, exportações de valor agregado, educação técnica e segurança económica — ou vamos repetir velhos erros? Aprendamos com Nigéria, Angola e Argélia: utilizemos o gás para industrializar, para educar, para diversificar. Façamos de Coral Norte o motor que acelera o país do estágio primário ao estágio industrial, com vantagens competitivas duradouras. Se fracassarmos, seremos cúmplices da oportunidade perdida, se tivermos sucesso, este será o capítulo que, daqui a 20 anos, contaremos como o dia em que Moçambique alcançou a independência económica, conforme a palavra de ordem do chefe de Estado Daniel Chapo, e começou a fabricar o seu próprio futuro.